1. Trata-se de Nota Explicativa a respeito do recente voto proferido pelo Ministro Alexandre do Moraes, do Supremo Tribunal Federal, nos autos da Ação Declaratória de Constitucionalidade 81/DF, que discute a constitucionalidade do art. 3º da Lei dos Mais Médicos, que condiciona a abertura de novos cursos de medicina ou o aumento de vagas de cursos já existentes à chamamento público (edital), a ser aberto pelo Ministério da Educação.
2. Como se sabe, o posicionamento do Ministro Relator, Gilmar Mendes, já foi proferido, sendo pela constitucionalidade do chamamento público, mas acrescentou a possibilidade de a sociedade civil pleitear o lançamento de editais para instalação de novos cursos em determinadas localidades, cabendo à Administração Pública responder a esses pleitos de forma fundamentada, com publicidade e em prazo razoável. Ainda, o Relator votou por manter os cursos que já se encontravam instalados em razão de decisões judiciais que haviam entendido pela inconstitucionalidade do art. 3º, e admitiu a continuidade do trâmite de processos administrativos que, também com fundamento em decisões judiciais, superaram a fase inicial de análise documental, devendo as fases seguintes observarem a Lei 12.871/2013.
3. Os Ministros Luiz Fux e Dias Toffoli acompanharam a decisão do Ministro Relator. No entanto, os Ministros Edson Fachin e Rosa Weber divergiram apenas quanto à proposta de manter a continuidade do trâmite dos processos administrativos, também entendendo pela constitucionalidade do chamamento público e sua incompatibilidade com a abertura de novos cursos de medicina com base na Lei 10.861/2004, mas limitando a exceção somente aos cursos que já haviam sido autorizados em razão de decisão judicial, excluindo-se dessa exceção aqueles que estavam em procedimento administrativo de autorização, mesmo que em razão das decisões judiciais.
4. O Ministro André Mendonça, em contrapartida, divergiu dos demais colegas quanto a adequação da política pública, considerando que, de fato, há uma má formulação que, no entanto, não indica uma inconstitucionalidade. Assim, votou conforme o Ministro Relator Gilmar Mendes, por declarar a constitucionalidade do dispositivo, mas sugeriu determinar ao Ministério da Educação que, no prazo de 180 dias, promova uma reanalise e redefinição dos instrumentos regulamentares da política pública, com fundamento em prévia avaliação de impacto regulatório, com a efetiva participação da sociedade civil. Também votou por determinar que sejam suspensos os pedidos de novos cursos até que seja efetivada a reanálise regulatória. Em relação aos pedidos e procedimentos administrativos e judiciais que objetivem a abertura de novos cursos ou ampliação de vagas naqueles já existentes, votou pela suspensão desses processos até que sejam ultimados os trabalhos necessários à reanálise regulatória determinada. No que diz respeito aos cursos já instalados com base em ordens judiciais que dispensaram o chamamento público, votou por mantê-los.
5. Ato contínuo, o Ministro Alexandre de Moraes proferiu seu voto-vista, que ora se explica nessa nota explicativa, em que acompanhou na íntegra o Ministro Relator para votar pela constitucionalidade do chamamento público, incluindo as duas exceções lançadas pelo Relator.
6. Assim, o cenário de votação quanto à adequação constitucional do art. 3º da Lei dos Mais Médicos está atualmente da seguinte maneira: 7 Ministros votaram até o momento, sendo que todos eles votaram pela constitucionalidade do chamamento público, de modo que a sistemática do art. 3º da Lei 12.871/2013 é incompatível com a abertura de novos cursos de medicina com base na Lei 10.861/2004.
7. Desses 7 Ministros, 4 entendem por incluir três exceções, quais sejam, i) a possibilidade de requerimento administrativo pela instalação de novos cursos em localidades específicas, devendo o Poder Público apresentar resposta fundamentada, de forma pública e em prazo razoável; ii) a continuidade dos cursos já instalados em razão de decisão judicial que havia reconhecido a inconstitucionalidade do art. 3º; iii) e o seguimento dos processos administrativos que ultrapassaram a fase inicial de análise documental a qual se refere o art. 19, § 1º do Decreto 9.235/2017, com a oportunidade de comprovar, no bojo do processo administrativo, a existência de interesse social em sua pretensão, ainda que localizadas em municipalidades não contempladas por editais de chamamento público. Outros 2 Ministros entendem que a terceira exceção não deve ser incluída, e apenas 1 Ministro entende pela instalação de um grupo de trabalho para reformular a política pública, de modo que os processos administrativos fiquem suspensos até a sua finalização.
8. Assim, até o momento, o voto do Ministro Relator Gilmar Mendes, que inclui as três exceções, segue sendo vencedor.
Do voto-vista do Ministro Alexandre de Moraes
9. O voto-vista do Ministro Alexandre começa com ele rejeitando, em caráter preliminar, a alegação de ilegitimidade ativa da Requerente Associação Nacional das Universidades Particulares – ANUP, e reconhecendo a demonstração da existência de controvérsia judicial relevante, o que é requisito para a admissão da ação.
10. No mérito, introduziu seu raciocínio tecendo considerações sobre a escassez de médicos no país, observando que mesmo o setor privado carece de recursos financeiros em volume suficiente para o desenvolvimento de cursos que demandam infraestrutura e serviços especializados de alto custo, e que isso constitui um fator de risco para a qualidade do ensino de medicina no Brasil, em termos de atingir a capacidade técnica mínima. Falou sobre estudos que demonstram a existência de limitações na capacidade financeira das faculdades de medicina para acompanhar as mudanças no ensino, podendo afetar negativamente a qualidade na formação do futuro médico.
11. Posteriormente, teceu considerações sobre a disciplina dos chamamentos públicos, em que abordou o cenário legislativo sobre o tema, e concluiu que o procedimento para abertura de novos cursos ou vagas, assim, pode ser sintetizado nas seguintes fases: (a) verificação da relevância e necessidade social; (b) análise da oferta de contrapartida e adesão dos gestores locais de saúde; (c) análise do padrão de qualidade, mediante o “instrumento de avaliação in loco realizada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – Inep”.
12. Ainda, mencionou o cenário crescente de instituições promovendo cursos de Medicina e a quantidade atual de pedidos judiciais relacionados com o tema, e delimitou a controvérsia judicial esboçada na ADC a avaliar se essa restrição à plena liberdade de oferta de cursos de medicina imposta pela Lei dos Mais Médicos é razoável e proporcionalmente adequada a um fim legítimo amparado pela Constituição.
13. Posteriormente, o Ministro abordou sobre a compreensão atual da Suprema Corte sobre a política pública de formação de médicos, mencionando a ADI 5035, que apreciou a validade do Programa Mais Médicos. Retomou, então, posicionamento que já havia adotado naquela ação, para reafirmar o cenário de escassez de médicos no país e de desigualdade regional na sua distribuição. Trouxe, nesse tópico, dados que demonstram a grave desproporção na distribuição de médicos entre as cidades e regiões brasileiras, ressaltando a necessidade de políticas em saúde que preconizem a equidade da demografia médica pelo país, de forma a respeitar as particularidades econômicas e sociais de cada região e município.
14. Assim, aduziu que a norma impugnada ataca diretamente esse problema, a partir de premissas fundadas em opiniões especializadas, com resultados que se mostram positivos, considerando que há a necessidade de mais profissionais médicos, especialmente nas regiões menos desenvolvidas; que o ensino de medicina é caro e depende de investimento; e que uma expansão indiscriminada dos cursos de medicina traria riscos à qualidade do atendimento à população. Nesse contexto, a política pública impugnada visa justamente limitar a expansão da oferta de cursos de medicina, direcionando-a para municípios onde há maior interesse social pela oferta de profissionais médicos.
15. Posteriormente, o Ministro Alexandre abordou os votos dos Ministros anteriores, e fez uma reflexão sobre as condições e os limites nos quais é dado ao Poder Judiciário examinar a validade de políticas públicas elaboradas pelos demais Poderes. No seu entendimento, não está no escopo das atividades constitucionais da Suprema Corte adentrar no mérito do Programa Mais Médicos e dizer como os demais Poderes devem lidar com o problema social enfrentado no país.
16. Nas palavras do Ministro, deve-se considerar a separação de poderes (independência) e sistema de freios e contrapesos (harmonia), em que, por mais que um Poder possui controle sobre o outro, suas atuações são delimitadas e devem ser respeitadas. Citou, inclusive, decisões anteriores, em que entendeu não caber ao Poder Judiciário determinar ao Executivo a adoção de determinadas políticas públicas em detrimento de outras, ou de elencar diretrizes para determinada política pública em detrimento de diretrizes já estabelecidas pelo Executivo. Nesses casos, disse que o cenário estabelecido não se revelava apto a legitimar a prestação jurisdicional pretendida no sentido de fazer executar determinada atividade pública, já que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário e nas da Suprema Corte a atribuição de formular e de implementar políticas públicas, pois, nesse domínio, o encargo reside nos Poder Legislativo e Executivo.
17. No caso em exame, o Ministro reconheceu a necessidade de apreciação de dados e estudos técnicos que amparem um juízo seguro a respeito das prognoses empreendidas pelos demais Poderes na formatação da política de expansão do ensino e formação de profissionais de saúde no Brasil, de forma que não seria possível afastar a conclusão desses Poderes de que há escassez de profissionais de saúde e que esse problema se relaciona diretamente com a questão dos desequilíbrios regionais.
18. Assim, para ele, o oferecimento de novas vagas direcionadas a municípios com maior necessidade, ainda que não seja uma solução decisiva para a oferta de serviços de saúde, coopera positivamente para a melhora do quadro de desigualdade geográfica. Ou seja, ainda que hajam críticas à escolha política do Programa Mais Médicos, isso não basta para a declaração de inconstitucionalidade pela Suprema Corte, porque tal política está calcada em premissas e objetivos adequados, além de ter sido capaz de produzir resultados que cooperaram para a melhoria do cenário, e as escolhas do Poder Público situaram-se dentro de alternativas válidas e legítimas.
19. Apesar disso, entendeu que a atuação do Ministério da Educação na seleção dos municípios onde está autorizada a instalação de novos cursos não deve inibir a possibilidade de que instituições de ensino e municipalidades requeiram, com fundamento no art. 5º, XXXIV, “a”, da CF, a seleção de localidades específicas, sustentando a sua adequação aos critérios e parâmetros vigentes. Fundamentou, também, no dever de transparência do Poder Público com relação aos municípios selecionados.
20. No que diz respeito à modulação dos efeitos, entendeu que, quanto aos cursos já instalados em razão de decisão judicial, mesmo que em desacordo com o arcabouço normativo que declarou constitucional, devem preservar o seu funcionamento, o que faz com base na segurança jurídica e nas expectativas legítimas dos discentes e das comunidades nas quais situados. Pelos mesmos fundamentos, entendeu que devem preservar o trâmite dos processos administrativos autorizativos das instituições de ensino que obtiveram mediante decisão judicial, desde que tenham superado a fase inicial de credenciamento, análise documental e validação in loco.
21. Assim, acompanhou na íntegra do voto do Ministro Relator Gilmar Mendes.
22. É a nota explicativa.
Dr. Esmeraldo Malheiros
Consultor Jurídico da AMIES
OAB/DF nº 9.494
Foto: Pedro França⁄Agência Senado